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Mais Mulheres Por Favor

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27
Nov18

[LIVROS] | Mrs Dalloway

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Mrs Dalloway foi um dos livros que, mal terminei a sua leitura, senti que precisava de reler. Motivo: não gostei da tradução da edição que li, pelo que decidi aquirir depois a da Relógio D'Água e ler novamente, do zero. Passou tanto tempo entre uma leitura e outra, que acabei mesmo por lê-lo do zero, já que me lembrava de muito pouco do enredo. Curiosamente, à medida que o li tive uma sensação de familiaridade assombrosa.
 
Esta nova experiência de leitura foi, tal como esperava, muito melhor. Fiquei, mais uma vez, encantada com a escrita de Virginia Woolf (podem ler as opiniões de Orlando e Um Quarto Só Para Si), que acabei por não resistir a comprar os seus Diários, um calhamaço com cerca de 700 páginas que foi editado este ano, também pela Relógio D'Água, para ir lendo aos bocadinhos e saber mais sobre a vida desta mulher e autora incrível.
 
Mrs Dalloway é um daqueles clássicos que a maior parte dos leitores vai, em algum momento da sua vida, acrescentar à sua lista de "livros lidos", e que é muito famoso pelo domínio magistral da técnica do fluxo de consciência, através da qual conhecemos a mente de diversos personagens muito marcantes. Tudo isto num espaço de 24 horas, em Londres, onde damos pelo passar do tempo, sempre que o Big Ben toca. Percorremos ruas de Londres, vontades, dúvidas e medos dos personagens através de um fio condutor muito bem conseguido. Clarissa (Mrs Dalloway) sai de casa, para tratar dos preparativos finais da festa que vai dar nesse dia à noite, e todo um leque de personagens e acontecimentos se desenrolam perante os nossos olhos, de múltiplas perspectivas, de uma forma que muito me agrada em termos literários, apesar de não ser das mais consensuais entre os leitores. 
Nunca mais diria de ninguém no mundo, agora, que esse alguém era isto ou aquilo. Sentia-se muito jovem e, ao mesmo tempo, indizivelmente velha. Passava como uma faca através de todas as coisas e, ao mesmo tempo, ficava de fora, a observar. Tinha a permanente sensação, quando olhava para os táxis, de estar de fora, de estar longe, sozinha, no mar; sempre havia tido a sensação de que era muito perigoso viver um só dia que fosse. Não que se julgasse inteligente, ou muito diferente dos demais. (...) Não sabia nada; nem línguas, nem história; raramente lia agora um livro, a não ser memórias, antes de adormecer. E, no entanto, era tão absorvente, para ela, tudo isto; os táxis que passavam. Mas jamais diria a respeito de Peter, jamais diria de si própria, eu sou isto ou sou aquilo.
Noventa e três anos nos separam da publicação de Mrs Dalloway, no entanto, os temas que Virginia Woolf aborda neste livro permanecem actuais e presentes nos nossos dias, tais como, a doença mental, o suicídio, a existencialidade, o feminismo. Das várias personagens deste livro, Clarissa Dalloway e Septimus Smith (um veterano da Primeira Guerra Mundial) foram as minhas preferidas, pois são aquelas cujas mentes são mais exploradas e que mais me fascinaram. Um livro incontornável da literatura que provavelmente vou reler novamente daqui a uns anos.
 
30
Dez17

[LIVROS] | As Melhores Leituras de 2017

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2017 foi um ano de grandes mudanças nas minhas leituras. Dos 53 livros que li, 46 foram escritos por mulheres, num total de 39 autoras diferentes. Li 17 livros de poesia, todos escritos por mulheres. Escolher as melhores leituras deste ano não foi propriamente fácil porque para além da lista de livros que li ser muito diversificada, não houve desilusões, todos resultaram, de alguma forma, numa experiência enriquecedora e inspiradora. Tal como já disse algumas vezes, quanto mais leio mulheres, mais gosto de o fazer e maior é a vontade de ler mais. Ficam abaixo as minhas leituras preferidas:
 
O livro mais desafiador que li este ano. Complexo, poderoso, essencial, feminista em tempos de ditadura. Apesar da grandiosidade em torno desta obra escrita pelas "três Marias", não tenham medo de lhe pegar, é maravilhoso e todo o contexto histórico, político e social que o envolve tornam este livro obrigatório.
 
O primeiro livro que li quando estava a pensar começar este blog e que me deu o decisivo empurrão. Virginia Woolf foi sem dúvida uma grande mulher e este ensaio sobre as mulheres e a ficção deveras emocionante. Muito se alterou desde então, mas há ainda tanto por fazer. Verdadeiramente inspirador.
 
A magnífica estreia literária de Svetlana Alexievich é constituída por centenas de entrevistas realizadas a mulheres russas que fizeram parte da Segunda Guerra Mundial. Foram atiradoras, cirurgiãs, enfermeiras, conduziram tanques e pilotaram aviões, entre muitas outras funções associadas ao ambiente bélico. De uma dureza perturbadora e tremendamente emocionante, faz-nos chorar pelo sofrimento cravado em cada página, mas também de orgulho pela coragem e pelas conquistas destas mulheres.
 
Maria Teresa Horta foi uma das melhores descobertas deste ano e este foi o livro que mais gostei. Paixão e loucura envolvem-se perigosamente a cada página, a cada poema, a cada parêntesis. Caracteriza-se por uma escrita feminina, recheada de intimidade e erotismo, onde são recorrentes as referências a Clarice Lispector, Sylvia Plath, Virginia Woolf, entre outras.
 
Reúne nove textos sobre desigualdade de género, todos maravilhosamente bem escritos, carregados de ironia, humor e tremendamente pertinentes. Rebecca Solnit é uma escritora contemporânea que merece toda a nossa atenção nos tempos que correm. Se ainda não a conhecem, leiam este livro com urgência.
 
Regressar a Han Kang num registo tão diferente de A Vegetariana foi uma das melhores coisas de 2017. Trata-se de um retrato comovente e terrivelmente duro da tensão e do massacre que se verificaram em 1980, na Coreia do Sul, especificamente na região de Gwangju. O segundo capítulo deste livro (O Amigo do Rapaz. 1980) foi o que mais me impressionou nesta obra, uma das melhores experiências literárias do ano.
 
Ali Smith, numa estrutura com variações entre passado e presente, escreve sobre a amizade entre duas pessoas com 70 anos de diferença. Delicado, belo e melancólico, tal como o Outono, este livro transporta-nos para uma amizade que se constrói gradualmente, de forma muito especial, ao mesmo tempo que nos presenteia com diversas referências ao contexto político em que se insere, já que foi escrito no pós-Brexit.
 
8. Poesia Reunida, Martha Medeiros
(ebook) A melhor descoberta de 2017 no que diz respeito à poesia. Precisamos de mais Martha Medeiros nos nossos corações e nas nossas mentes, por isso, fica aqui o apelo às editoras portuguesas: publiquem-na!
 
Lançado este ano, Poesis é uma autêntica epopeia no que diz respeito à génese da poesia. É uma descrição absolutamente soberba do seu processo criativo: pensar, escrever, riscar, sofrer, relembrar, ler, reler. Repetir todo o processo novamente.
 
10. Nadar na Piscina dos Pequenos, Golgona Anghel
Golgona Anghel, nascida na Roménia mas residente em Portugal há muitos anos, é uma das poetisas que mais gosto. Nadar na Piscina dos Pequenos vem, uma vez mais, confirmar a qualidade e a originalidade da sua poesia.
 
Releitura que teve como objectivo incentivar-me a ler os seus outros três livros (algo que acontecerá no início de 2018). Um dos livros preferidos da vida que todos deviam ler.
 
12. Baladas, Hilda Hilst
(ebook) A par de Martha Medeiros, Hilda Hilst foi outra poetisa brasileira pela qual me apaixonei perdidamente este ano ao ler Baladas. Aguardo ansiosamente que as obras destas escritoras sejam publicadas em Portugal ou que alguém aí desse lado vá ao Brasil em breve e me faça o favor de mas trazer.
 
09
Nov17

[LIVROS] | Orlando

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Orlando, de Virginia Woolf, é um livro que, mais de um mês depois da sua leitura, ainda mexe comigo e me deixa a pensar no seu conteúdo. Sinto que não consegui absorver a totalidade do seu significado e propósito tal é a sua grandiosidade, motivo pelo qual demorei algum tempo a escrever esta opinião. É um daqueles livros que merecerá certamente uma releitura, para consolidar algumas ideias e descobrir pormenores que me passaram ao lado.

 

Trata-se de uma biografia, onde narrador e biógrafo são um só conduzindo-nos pela vida de Orlando de uma forma magistral, com apartes, reflexões e questões relevantes, e com um ritmo de narrativa muito peculiar, ora com descrições mais pormenorizadas, ora com acelarações/mudanças de tema repentinas, tudo divinalmente conjugado, demonstrando a imensa qualidade de Virginia Woolf enquanto escritora (se dúvidas ainda existissem).

Terá o dedo da morte de poisar de tempos a tempos no tumulto da vida para que este nos não destrua? Seremos feitos de tal massa que precisemos de tomar diariamente pequenas doses de morte, sob pena de não conseguirmos cumprir a missão de viver? E que estranhos poderes serão esses que penetram nos nossos meandros mais secretos e alteram, sem que a nossa vontade seja chamada a intervir, os tesouros que nos são mais caros?

Conhecemos Orlando enquanto jovem amante de livros e vamos acompanhando os detalhes do seu desenvolvimento e crescimento enquanto homem. Assistimos à forma como se apaixona fervorosamente e ao quebrar de todas as suas ilusões com um desgosto. Na sequência deste desgosto amoroso, Orlando isola-se na sua casa de campo e, mais tarde, acaba por partir para Constantinopla, como embaixador. É aqui que se dá o acontecimento fulcral deste livro: Orlando adormece durante sete dias e, quando acorda, é uma mulher, facto que é visto com total naturalidade e sem questionamento ou explicação. Não é o processo de transformação que importa, nem tão pouco a passagem do tempo ao longo desta biografia, já que paralelamente aos trinta anos de Orlando decorrem três séculos de período histórico, assinalado pelas mudanças na monarquia, acontecimentos históricos e evolução tecnológica.

 

A importância deste livro deve-se à forma como Woolf explora as questões de dualidade de género. Para além das diferenças óbvias, são evidenciadas as características mais íntimas de cada um, as suas preocupações, pensamentos e objectivos, o que é esperado dos mesmos pela família e sociedade, uma visão bastante objectiva, pejada de comentários irónicos e com um humor extraordinário. Virginia Woolf desconstrói o que é exigido das mulheres de forma simples e descomplexada, salientando que o caminho (quer das mulheres, como dos homens) deve caracterizado pela liberdade.

Recordava como, no tempo em que era homem, exigia das mulheres que fossem obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas. "Agora vou ter de pagar na minha própria carne esses desejos", reflectiu; "porque as mulheres não são (a ajuizar pela minha breve experiência de pertença ao sexo) obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas por natureza. Só podem alcançar essas graças, sem as quais não gozam nenhum dos prazeres da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. Há o penteado", pensou, "que só por si me vai roubar cada manhã uma hora; há o ver-se ao espelho, mais uma hora; há o espartilho e as rendas; o banho e o pó de arroz; há o mudar de vestido, trocando o cetim pela renda e a renda pela seda; há o ser casta todos os dias do ano..." Aqui bateu o pé com impaciência, exibindo uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro empoleirado no mastro, que por acaso olhou para baixo nesse instante, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o pé e só por um triz se salvou. "Se ver os meus tornozelos pode custar a vida a uma honesta criatura que com certeza tem mulher e filhos para sustentar, manda a mais elementar humanidade que os traga sempre cobertos", pensou Orlando. As pernas eram, porém, um dos seus maiores encantos. E pôs-se a pensar na bizarra situação a que se chegou quando a mulher é obrigada a cobrir todos os seus encantos para que um marinheiro se não despenhe do topo de um mastro.

Em 1928, Virginia Woolf demonstra que era, sem dúvida, uma mulher muito à frente do seu tempo, escrevendo um romance fundamental, com conteúdo intemporal, onde o amor aos livros e à literatura está constantemente presente.

 

11
Set17

[LIVROS] | Um Quarto Só para Si

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Um Quarto Só para Si, ensaio publicado em 1929, baseia-se em duas conferências com o tema As Mulheres e a Ficção dadas por Virginia Woolf a um público feminino. É mundialmente reconhecido como uma obra clássica feminista onde Virginia reflecte, de forma muito clara, porém carregada de ironia, acerca da forma como a educação e a sociedade influenciaram a presença das mulheres na literatura. Esta presença foi quase nula até à segunda metade do século XVIII, época em que surgiram os nomes de Jane Austen, das irmãs Brontë e George Eliot (Mary Ann Evans), responsáveis por obras incontornáveis da literatura como Orgulho e Preconceito, O Monte dos Vendavais (Emily Brontë) e Middlemarch.

 

No início deste ensaio, Virginia Woolf alerta o seu auditório que: o que vou descrever não existe: Oxbridge é uma invenção; Ferhnam também; "eu" é somente um termo conveniente para alguém que não tem uma existência real. As mentiras hão-de fluir dos meus lábios, mas talvez possa haver alguma verdade misturada nelas; cabe-vos procurar e encontrar essa verdade e decidir se vale a pena guardar qualquer fracção dela. Caso contrário ides atirar, evidentemente, tudo para o cesto dos papéis e esquecer. Feita a ressalva, como podemos não nos apaixonar de imediato por Virginia Woolf?

 

O papel de superioridade que os homens assumiram ao longo de séculos em relação ao sexo feminino e a falta de condições financeiras, de um espaço espaço próprio e de educação, reflexo de uma sociedade patriacal, são constantemente reforçados por Virginia como as causas fulcrais para as mulheres terem surgido tão tarde, e a muito custo, na literatura.

Mas aquilo que acho deplorável, continuei, olhando outra vez para as prateleiras, é que nada se saiba sobre as mulheres anteriores ao século XVIII. Não surge qualquer pista no meu espírito para me voltar para este lado ou para aquele. Eis-me a indagar porque razão as mulheres não escreveram poesia na época isabelina; e não sei como foram educadas: se as ensinavam a escrever; se tinham salas de estar para si; quantos filhos tinham antes dos vinte e um anos; o que, resumindo, faziam das oito da manhã às oito da noite.

 

Uma vez ultrapassada a barreira social e educional que impedia que as mulheres tivessem as mínimas condições para escrever, Virginia Woolf chama a atenção para as dificuldades que as primeiras mulheres que se aventuraram nesse caminho sentiram: A indiferença do mundo que Keats, Flaubert e outros homens de génio acharam tão difícil de suportar, era, no caso delas, não a indiferença, mas a hostilidade. O mundo não lhes dizia como dizia a eles: "Escrevam se quiserem; é-me indiferente". O mundo dizia com uma gargalhada grosseira "Escrever? Para que serve o que escrevem?".

 

Ao longo desta leitura somos diversas vezes confrontados com a visão prática que Virginia Woolf tem do mundo. Sempre muito acertiva, defende acerrimamente que a independência financeira da mulher é um factor fundamental para que esta possa ser livre para escrever: A poesia depende da liberdade intelectual. E as mulheres têm sido sempre pobres, não só durante duzentos anos, mas desde o início dos tempos. As mulheres têm tido menos liberdade intelectual do que os filhos dos escravos atenienses. Assim, as mulheres não têm sido bafejadas pela sorte para escrever poesia. É por isso que tenho posto tanta ênfase no dinheiro e num quarto só para elas.

 

Esta opinião já vai longa e tal deve-se ao mérito das palavras de Virginia Woolf. Fiz imensas anotações e senti, desde o início, uma relação muito forte com este livro, com esta escritora e com a mensagem feminista transmitida. Toda a experiência de leitura de mulheres que se preocupam em analisar a causa feminina e em procurar soluções, sempre com a esperança de que havemos de ultrapassar todas as barreiras que nos foram e são colocadas, deixou-me muito sensibilizada ao ponto de não reconhecer a alma geralmente insensível que habita em mim. Deixo-vos mais umas partes (épicas) deste livro maravilhoso, leiam-nos enquanto imaginam Virginia a discursar para uma plateia universitária feminina, há 88 anos atrás.

 

Que talento, que integridade devem ter sido exigidos em face das críticas a que estavam sujeitas, no meio daquela sociedade puramente patriacal, para segurarem com firmeza uma coisa tal como a viam sem se violentarem. Apenas Jane Austen e Emily Brontë o conseguiram. É, talvez, o mais belo motivo de orgulho. Escreveram como as mulheres escrevem, não como os homens.

 

Portanto queria pedir-vos que escrevêsseis todo o tipo de livros, sem hesitar perante qualquer assunto por muito trivial ou vasto que seja. De uma maneira ou de outra, espero que tenhais bastante dinheiro vosso para viajar e saborear o ócio, para contemplar o futuro ou o passado do mundo, para sonhar em cima dos livros, parar às esquinas das ruas e permitir que uma linha do vosso pensamento mergulhe no seu curso.

 

Numa escala de zero a dez classifico-o como: obrigatório.

 

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