[LIVROS] | Ringue
O Projecto Ler Poesia tem estado em ponto morto nesta segunda metade do ano, mas não está esquecido. Em Setembro, houve tempo para ler um pequeno livro da colecção "Inéditos", do Expresso, da autoria de Matilde Campilho. Há um par de anos quando li Jóquei, gostei, mas não amei, pelo que estava com vontade de tirar a teima com este Ringue. Não sei se foi do clima do verão, das férias, da praia e da piscina, mas adorei os poemas deste livro. Dei por mim a lê-los uma e outra vez, tal foi o meu amor, para os interiorizar. Deixo abaixo o meu preferido.
Strand
Algumas vezes
mesmo quando faz sol
e pouco vento e
os reflexos das coisas
desenham objetos
multiformes sobre as
calçadas extraordinárias
da minha cidade
Mesmo assim às vezes
em certos sábados
eu dou por mim trepando
muito devagar o escadote
da memória ou da imagem
Levanto um dedo indicador
e de repente meu corpo
está junto à estante stereo
Vinte e sete centímetros
acima do chão americano
e à minha frente o abismo
Aquele transformador abismo
onde crescem e se reproduzem
as cabeças multiformes
Meu corpo está de novo
na frente do corpo essencial
O corpo que nos ajudará
a ultrapassar o começo
deste século esfarrapado
Quero dizer, às vezes
Mesmo quando é sábado
e o meu país é o mais manso
e mais solar deste continente
que mergulha devagar
na escuridão do retrocesso
Eu regresso à livraria americana
esqueço a política americana
ou a feroz decisão americana
E me coloco de pé na frente
de O'Hara, Berger, Stein,
Bolaño, Carson, Amichai,
Didion, Arendt ou até O. Paz
Há muita luz a vir da estante
Pátria nenhuma a sobressair
Há aquela ideia enciclopédica
de Diderot que diz que devemos
reunir todo o conhecimento
acumulado à superfície desta terra
Para assim demonstrar o sistema geral
às pessoas com quem vivemos
E também transmiti-lo
àqueles que aqui ficarão
muito depois de nós
Para que o trabalho de séculos
e séculos não se torne inútil
nos séculos seguintes
Para que os nossos descendentes
sejam mais intruídos, mais
virtuosos e mais alegres
Sim, talvez este texto
seja demasiado longo
Ou este século demasiado duro
Talvez faça demasiado sol
sobre o meu corpo que insiste
no exercício da memória
Mas em certo sábados
desta época de transição
eu acho mesmo que
a força atlética mais eficaz
É aquela que nos leva
a percorrer com atenção
uma boa parte da literatura
Que nos antecede, que nos
é contemporânea, e cujo corpo
se deitará sobre o nosso corpo
quando todos os nossos corpos
forem finalmente a cinza branca
de uma antiga e ultrapassada era.
(para quem chegou até aqui, é lindo, não é?) Mais uma vez, à semelhança do que me aconteceu com outros livros que li nas minhas férias, fiquei com vontade de escrever, algo que ainda não me passou. Já tentei escrever um poema ou outro, mas acabei sempre por apagar tudo. O que mais gostei de escrever, apaguei sem querer no telemóvel (é lamentável não haver por lá um CTRL+Z, ou há e eu fui simplesmente burra?) e quase tive vontade de chorar. Se calhar foi um sinal do destino e aquilo não valia nada. Isto tudo para chegar a uma conclusão poética sobre a poesia: a beleza da poesia é isto mesmo, uns poemas não nos dizem nada, outros dizem tudo e são como um pequeno terramoto nas nossas vidas, fazem despertar em nós coisas que não julgávamos serem possíveis, pelo que é importante não desistir de certos poetas porque a primeira leitura não correu bem. Já vos aconteceu isto com algum poeta/poetisa? Já ficaram com vontade de escrever poesia depois de ler um livro de poemas? Vá lá, não me façam parecer um extraterrestre e partilhem as vossas histórias nos comentários.