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19
Dez17

[LIVROS] | Yoro

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Yoro, de Marina Perezagua, juntou-se ao conjunto dos livros mais duros que li este ano. O romance de estreia da escritora espanhola, que, até este livro, apenas se dedicara ao conto, é caracterizado por uma escrita com uma componente visual e visceral muito forte e conta com uma pluraridade de cenários, entre eles, Hiroxima, Nova Iorque e República Democrática do Congo, permitindo-nos fazer uma viagem não só geográfica, mas também pelo tempo. Se, por um lado, acompanhamos acontecimentos marcantes da história (a Segunda Guerra Mundial e o lançamento da bomba atómica em Hiroxima), por outro, somos confrontados com questões contemporâneas fracturantes.

 

Dividido em onze partes, Gravidez Zero, nove Meses e Parto, que, na verdade, correspondem a um período bastante longo (desde 1942 até 2014), Yoro deixa-nos inquietos, revoltados, destroçados, submersos na sua narrativa, contada na voz de H, H de Hiroxima, H letra muda (múltiplos são os seus significados), que, aos 13 anos, presenciou o acontecimento que mudou para sempre a história de Hiroxima e dos seus habitantes, mas também do mundo.

Foi no dia 6 de agosto de 1945. Aquela coisa tinha sido criada sem mãos capazes de empunhar armas, mas, naquele dia, destruiu mais de 200 mil pessoas e, embora também não tivesse boca, com um só sopro arrasou casas, árvores e fábricas. Embora a tivessem concebido sem calor humano, fundiu ferro e incenerou parques, cães e pássaros. Também não lhe tinham dado um sexo, mas puseram-lhe nome de menino, Little Boy, e, às 8h15 da manhã desse dia de céu limpo de agosto, aquele artefacto foi lançado sobre Hiroxima.

É a partir deste acontecimento que se desencadeia toda a história até ao momento presente (do qual temos um pequeno vislumbre no início do livro). H, prestes a ser capturada, escreve a história da sua vida, de forma fragmentada, recorrendo diversas vezes a analepses e prolepses, com o objectivo explicar o motivo de ter cometido um crime. Apesar do fio condutor desta história ser a busca de Jim por Yoro, que mais tarde se torna na busca dos dois, H e Jim, este livro representa muito mais do que a busca por uma criança, é a busca de H enquanto pessoa brutalmente marcada por uma experiência traumática.

 

Prefiro não desvendar nesta opinião tudo o que está em torno desta busca pessoal, mas posso adiantar que foi determinante para ter adorado este livro, já que se trata de uma temática que, com grande pena minha, ainda não tinha explorado literariamente e que não fazia ideia que iria surgir neste livro.

 

Apesar de estarmos familiarizados com o que aconteceu na época e com as consequências mais óbvias da radioactividade, que se fizeram, fazem e farão sentir durante muito tempo, é impossível não nos sentirmos esmagados pelo que é descrito neste livro. Trata-se de uma dor que dificilmente iremos experimentar, mas que, simultaneamente, nos deixa alerta, já que a ameaça da existência de várias (tantas) bombas nucleares é assustadoramente real.

 

Este livro descreve sem floreados nem meias palavras o que aconteceu às vítimas da bomba atómica, relata pormenores que me eram completamente desconhecidos e que todos precisamos saber. É esmagador, mas essencial. Para além disso, Yoro faz uma ponte muito pertinente com um desastre humanitário bem actual, em África. Juntamente com H, somos enviados para os ambientes subterrâneos e claustrofóbicos das minas de urânio, coltan e ouro, entre a Namíbia e a República Democrática do Congo, locais onde dignidade humana, pura e simplesmente, não existe. Locais onde as organizações mundiais, que deviam proteger estas pessoas e regulamentar o comércio destes materiais, são coniventes com a exploração levada a cabo pelas grandes potências mundiais, dependentes de recursos para garantir o avanço tecnológico e para se protegerem de uma, mais que provável, guerra. Nesta fase final do romance, comprovamos derradeiramente que a escrita de Marina Perezagua é, de facto, muito poderosa, horroriza e sufoca, esmaga.

Em África, o tempo não é só de ouro. É ainda mais valioso. O tempo é de urânio. Os negros não merecem ser informados, nem sequer sobre o porquê da morte que lhes sobrevém, essa morte a que não reununciariam, porque a necessidade de encher a sua própria boca, ou a do filho, as dos filhos, ou as dos pais, sente-se como mais premente. A fome, essa lei fisiológica, não se esconde, pelo contrário, manifesta-se. A radiação, em compensação, é o modo que a morte tem de saciar a sua fome: o silêncio.

Urânio. O seu simples nome parecia-me vir dos infernos, como Úrano, aquele deus, filho e esposo, precisamente de Gea, a Mãe Terra. O urânio era o que tinha mudado a minha vida. Tinha-me tirado os meus pais, avós, amigos, tinha arrasado a minha cidade, destruído o meu país, insultado a raça humana, e, contudo, continuava a ser, para quase todos os países, o ouro mais cobiçado, o ouro radioativo (...).

Este é um livro que aborda questões históricas, sociais, culturais e humanitárias, que põe a nu o que se seguiu à bomba nuclear e, mais recentemente, a crise humanitária que se vive em África em consequência do avanço civilizacional insustentado e sem precedentes, conduzido pelos interesses de países que deixam os direitos humanos no plano mais subterrâneo que pode existir. Recomendo vivamente e deixo o pedido que editem brevemente os contos de Marina Perezagua que, para além de escritora e professora, já percorreu a nado o Estreito de Gibraltar em menos de quatro horas.

 

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