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Mais Mulheres Por Favor

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04
Out18

[LIVROS] | O Quarto de Marte

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Quando este livro foi publicado, este artigo de Isabel Lucas deixou-me deveras curiosa. Ainda não tinha lido nada desta autora e este parecia-me, dos livros já editados em Portugal, o que mais me podia agradar. Pouco tempo depois, soube-se que este constava da Longlist do Booker Prize 2018 e aí não consegui mesmo resistir. No ano passado, aconteceu-me o mesmo com Outono, de Ali Smith. Depois de ter terminado a sua leitura, mais uma boa notícia, O Quarto de Marte faz parte da Shortlist. Assumi-me imediatamente como team Kushner, apesar de não conhecer os restantes livros (de salientar que nenhum deles foi ainda publicado por cá). O vencedor será anunciado no dia 16 de Outubro.

 

Em relação ao livro, posso adiantar que, apesar da minha curiosidade, não estava certa de que seria uma aposta ganha. Iniciei a leitura um pouco de pé atrás, mas o livro foi-me envolvendo e desarmando, conquistando-me com a escrita, o enredo, os saltos temporais e de narradores. A dado momento, o entusiasmo esmoreceu um pouco porque prolonguei demasiado a sua leitura, por falta de tempo, mas quando o retomei a tempo inteiro gostei ainda mais dele. Fiquei realmente com pena de ter de me despedir dos personagens, sobretudo de Romy Hall, uma stripper e prostituta condenada a duas prisões perpétuas consecutivas por ter assassinado um dos seus clientes e personagem central d'O Quarto de Marte, mas também do ambiente sombrio que se sente neste livro e da escrita de Kushner.

 

Rachel Kushner demorou seis anos a escrever este livro, entrou em prisões como voluntária, falou com reclusas, guardas, advogados, mas não gosta de aplicar a palavra pesquisa ao processo. O foco central do livro é, portanto, a penitenciária feminina de Stanvillle, na Califórnia, mas, ao longo deste, vamos também descobrindo o passado das personagens que nos são apresentadas, um passado fora da prisão, e os caminhos que as levaram até ali, quem deixaram cá fora, etc. As partes que mais me marcaram foram, precisamente, as que se passam na prisão, a descrição do ambiente, a interacção entre reclusas, a interacção entre reclusas e guardas, os monólogos interiores, a luta por alguma dignidade, pelos bens essenciais de que são constantemente privadas, as pequenas conquistas, o arrependimento, a relação de Romy com a literatura

Recebi um embrulho. Como uma das sortudas que têm família, ajuda no exterior, eu, Hall, fui chamada para ir buscar o meu embrulho. O Hauser tinha-me arranjado três livros. "Minha Ántonia", "Sei porque Canta o Pássaro na Gaiola" e "Mataram a Cotovia".

Apesar da dureza de algumas partes, este livro é também caracterizado pelo humor, doseados com uma mestria que me agradou sobremaneira, mostrando que Rachel Kushner é, de facto, uma grande escritora. O Quarto de Marte dá-nos a conhecer uma perspectiva de um ambiente do qual, a maioria de nós, pouco sabe, mas que não deixa de ser riquíssimo, impressionante e devastador. Recomendo vivamente.

O silêncio da cela é onde a verdadeira pergunta se demora na mente de uma mulher. A única verdadeira pergunta, impossível de responder. O porquê do que fizemos. O como. Não o como em termos práticos, mas o outro. Como pudeste fazer tal coisa. Como pudeste.

 

28
Set17

[LIVROS] | Outono

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Os finalistas do Man Booker Prize foram anunciados no dia 13 de Setembro, fazendo parte da lista reduzida três mulheres: Emily Fridlund, com History of Wolves, Fiona Molzey, com Elmet, e Ali Smith com Outono, publicado em Portugal, pela Elsinore, em Maio deste ano. Como tinha lido há pouco tempo o livro de contos A Primeira Pessoa e outras histórias, de Ali Smith, e gostado bastante (falarei dele em breve), decidi comprar Outono e levá-lo para o Algarve para o saborear entre mergulhos na praia e na piscina, numa semana de transição entre Verão e Outono, convencendo-me que estavam reunidas as condições perfeitas para a sua leitura.

 

Soube, após poucas páginas lidas, que Outono ia conquistar o meu coração, facto que veio a confirmar-se com maior evidência quando dei por mim a poupar as páginas finais, apesar de saber que este livro faz parte de uma tetralogia (relativa às estações do ano, naturalmente). Sem ter lido mais nenhum dos romances, foi crescendo uma sensação dentro de mim de que este livro seria o vencedor do prémio, devido à forma como está escrito (consolidei o meu gosto pela escrita de Ali Smith com este livro), à delicadeza da história e, sobretudo, ao contexto político em que se insere, já que foi escrito no pós-Brexit e são feitas diversas referências a um futuro que se avizinha incerto e instável após este acontecimento e que nos toca cada vez mais directa do que indirectamente.

 

Ali Smith, numa estrutura que muito aprecio, com viagens entre passado e presente, escreve sobre a amizade entre duas pessoas com 70 anos de diferença: Daniel Glück e Elisabeth Demand. Quando Elisabeth, ainda criança, muda de casa com a mãe conhece o misterioso vizinho do lado, Daniel, nascendo uma relação de amizade que irá durar para além dos tempos, e que vamos acompanhando ao longo deste livro. Daniel é um homem culto, que gosta de ler e aprecia arte, que escreveu letras de músicas, e que introduz Elisabeth a este mundo apesar da relutância da mãe desta, já que não vê com bons olhos que Elisabeth passe tanto tempo com um homem tão velho.

Devemos estar sempre a ler alguma coisa, disse ele. Mesmo que não estejamos a ler fisicamente. Caso contrário, como seremos nós capazes de ler o mundo? Imagina o processo como uma constante.

Não quero revelar mais do que estes traços do livro, porque acho que deve ser descoberto à medida que é lido, tal como o fiz, sem saber nada sobre ele. Vão surpreender-se e ficar ligados a esta história que tem tanto de bela quanto de melancólica (afinal, não é assim mesmo o Outono?), fazendo-nos reflectir sobre diversos aspectos sociais e políticos, enquanto admiramos a construção e evolução de uma relação de amizade invulgar, mas tão bonita.

Nesse mesmo dia, à noite, quando estava em casa a adormecer no sofá em frente à televisão, Elisabeth rememoraria o momento em que viu os olhos dele abrirem, e no quanto se assemelhava àquele instante em que por acidente se vê as lâmpadas dos postes de iluminação pública acender e se tem a sensação de se estar a ser brindado com um presente, ou uma oportunidade, ou de se ser tido como distinguido e escolhido pelo momento.

 

O vencedor do Man Booker Prize será anunciado no dia 17 de Outubro e estarei a torcer por Ali Smith. Ainda assim, gostava muito que as obras das outras duas escritoras na lista de finalistas fossem editadas em Portugal, em particular Fiona Molzey, já que tem 29 anos e Elmet é o seu romance de estreia.

 

18
Set17

[LIVROS] | A Vegetariana

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A Vegetariana, de Han Kang, foi anunciado como vencedor do Man Booker Prize em Maio de 2016 e, em Setembro do mesmo ano, quando foi publicado em Portugal pela Dom Quixote decidi lê-lo. Como poderia ter Han Kang vencido Elena Ferrante?, era a questão que se impunha.

 

Lembro-me que, na época, gostei do livro, mas não senti a empatia que esperava ter por um livro vencedor do Man Booker Prize. Provavelmente, senti que adorar este livro seria trair Ferrante, a minha obsessão literária do momento, pelo que a leitura não fluiu da melhor das formas, ainda assim, percebi que o livro tinha realmente potencial. Com o nascimento do Mais Mulheres Por Favor, decidi que este seria um dos livros que iria reler e publicar uma opinião. Esta releitura resultou, sem dúvida, muito melhor! Compreendi verdadeiramente a qualidade de Han Kang e fiquei a ansiar que fosse publicado o segundo livro da escritora em Portugal: Atos Humanos, também pela Dom Quixote, e, também, já na pilha de livros por ler cá de casa. 

 

A Vegetariana divide-se em três partes, narradas por três pessoas que assistem à transformação da personagem principal deste livro, Yeong-hye, de diferentes perspectivas: o marido, o cunhado e a irmã. No início deste livro, Yeong-hye, após ter tido um sonho, decide deixar de consumir alimentos de origem animal, carne, peixe, ovos, leite, etc., desfazendo-se também da roupa que era feita de couro, perante o olhar estupefacto do marido, com o qual mantém uma relação desprovida de amor. É necessário ter em conta que, na cultura sul-coreana, um acto destes não é visto com bons olhos, exemplo disso é uma frase que lhe é dirigida, num jantar de negócios com o patrão do marido, quando esta anuncia que não come carne: Bem, devo confessar que me dou por muito feliz por nunca ter sido obrigado a comer com um verdadeiro vegetariano. Detestaria ter de partilhar uma refeição com alguém que considera repugnante comer carne, só por ser essa a sua opinião pessoal, não concordam?

 

Apesar de nos ser natural alguém tornar-se vegetariano, compreendemos, com o desenrolar da primeira parte deste livro, que se passa algo mais profundo com Yeong-hye. Para além do marido referir que esta perdeu muito peso, assistimos a momentos em que esta está completamente letárgica, enquanto, noutros, age de forma violenta, apesar da sua fraqueza física. Em alguns momentos da primeira parte do livro, é-nos mostrado o que Yeong-hye está a pensar.

A única coisa que me dói é o peito. Há qualquer coisa presa no meu plexo solar. Não sei o que será. Tem lá estado sempre nos últimos tempos. Apesar de ter deixado de usar sutiã, estou sempre a sentir este alto. Por mais fundo que tente respirar, não desaparece.

É uma rede de gritos e gemidos entrelaçados, sobrepostos em camadas, que forma aquele alto. Por causa da carne. Comi demasiada carne. As vidas dos animais que comi alojaram-se todas ali. Sangue e carne, esses corpos despedaçados estão espalhados por todos os recantos do meu corpo e, apesar dos resíduos físicos terem sido expelidos, as suas vidas teimam em permanecer dentro de mim.

Apetece-me gritar uma vez, só mais uma vez. Apetece-me atirar-me por aquela janela escura como breu. Talvez assim conseguisse acabar de vez com este nó dentro do meu corpo. Sim, talvez resultasse.

Ninguém pode ajudar-me. Ninguém pode salvar-me. Ninguém pode fazer-me respirar.

A segunda parte do livro é muito interessante em termos literários. Han Kang descreve um conjunto de cenas completamente diferentes de tudo o que já li, para o bem e para o mal, e sobre a qual não quero desvendar nada. Devem partir à descoberta, com os sentidos apurados, apesar dos sentimentos negativos que esta vos vai despertar.

 

A parte final é o culmirar de tudo o que tem acontecido com Yeong-hye ao longo do livro, mas não só. São-nos revelados pormenores sobre acontecimentos do passado que fazem com que consigamos encaixar algumas peças no complexo puzzle que esta personagem principal representa, sem nunca conseguirmos compreender o que se passa verdadeiramente na sua alma.

 

Han Kang conseguiu retratar de forma soberba a revolução extremamente complexa que se passa no interior de Yeong-hye, bem como a sua transformação interior e exterior (a metáfora apresentada na parte final é perfeita - apesar de estar na sinopse do livro, prefiro não revelar), deixando-nos compreender umas coisas, enquanto outras irão permanecer um mistério. Uma escritora contemporânea para seguir atentamente.

 

É o teu corpo, podes tratá-lo como quiseres. É a única coisa em que és livre de fazeres o que quiseres. E nem sequer nisso te dão liberdade.

 

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