[LIVROS] | As Melhores Leituras de 2017
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Depois da magnífica experiência que foi ler (e reler) A Vegetariana, as expectativas para Atos Humanos era bastante elevadas. Incrivelmente, este livro tocou-me ainda mais e tornou-se o meu preferido da autora. É muito distinto de A Vegetariana, quer em termos de estrutura, como de escrita e do que nos é contado, mas entranhou-se por completo no que são os meus gostos literários actuais.
Atos Humanos é um retrato comovente e terrivelmente duro da tensão e do massacre que se verificaram em 1980, na Coreia do Sul, especificamente na região de Gwangju. Está dividido em sete partes, relativas a sete pessoas diferentes e a momentos temporais também distintos, mas que se relacionam entre si, sendo a última parte um epílogo da escritora.
Não era que não soubéssemos que os soldados eram em número incrivelmente superior ao nosso. Mas o mais estranho é que isso não nos importava. Desde que a revolta começara, eu sentia uma coisa qualquer a correr-me nas veias, uma coisa tão avassaladora como qualquer exército.
Consciência.
Consciência, a coisa mais assustadora que existe no mundo.
Park Chung-hee instaurou, em 1979, a lei marcial, em resposta às manifestações que se faziam sentir no Sul do país, que indiciavam que o regime autoritarista (na prática, uma ditatura) resultante do golpe de Estado encabeçado por Park teria os dias contados. Park acabou por ser assassinado em Outubro de 1979 pelo chefe dos seus serviços de segurança, subindo, no entanto, ao poder Chun Doohwan, que partilhava os mesmos métodos firmes e autoritaristas de governação. Assim, em 1980, Chun estendeu a lei marcial a todo o país, restringiu ainda mais a liberdade da imprensa, encerrou universidades e proibiu actividades políticas, o que, naturalmente, fez agravar o clima de insatisfação com o regime, que já se manifestava fortemente. Na cidade de Gwangju, na sequência das decisões de Chun, verificaram-se manifestações estudantis, brutalmente silenciadas através do uso indiscriminado da violência, facto que resultou em milhares de pessoas mortas.
Han Kang dá voz a um conjunto de estudantes que vivenciaram os eventos desta época, aos seus receios e à incrível coragem que demonstraram em resistir e cuidar dos feridos e dos mortos, colocando em risco a sua própria vida. Muitos dos que sobreviveram foram sujeitos a tortura física e psicológica que deixou marcas profundamente traumáticas nas suas vidas. É também dada voz aos familiares destes, que buscavam desesperadamente por notícias suas no meio do caos e da desorganização que resultou da absurda brutalidade e desrespeito pelos corpos das vítimas deste massacre.
Todos os dias observo a cicatriz que tenho na mão. Este sítio onde outrora o osso esteve exposto, onde uma secreção esbranquiçada escorria de uma ferida putrefacta. Sempre que vejo uma vulgar esferográfica Monami, fico com a respiração presa na garganta. Espero que o tempo me arraste como a água enlameada. Espero que a morte chegue e me limpe, me liberte da memória dessas outras mortes esquálidas que assombram os meus dias e as minhas noites.
Dong-ho é a figura central deste livro, um rapaz que procura o melhor amigo entre os cadáveres de uma morgue improvisada, após terem estado numa manifestação que terminou de forma terrivelmente violenta, e em torno do qual surgem as restantes vozes deste poderoso livro, vozes que, de diferentes formas, se cruzaram no caminho de Dong-ho. Em termos literários e pessoais, o segundo capítulo (O Amigo do Rapaz. 1980) foi o que mais me impressionou.
Tal como referi antes, o livro termina com o testemunho da escritora, Han Kang, que, na época da revolta de Gwangju, tinha nove anos. Han Kang relata-nos a mudança de casa que a sua família se viu obrigada a fazer nessa época (mudaram-se de Gwangju para os arredores de Seul) e as conversas de preocupação que os familiares mantinham em voz baixa, fazendo também a ponte entre esta experiência pessoal e a necessidade que sentiu de relatar este acontecimento, mostrando-nos de que forma chega à personagem central deste livro.
Atos Humanos é, portanto, um livro poderoso e universal, um monumento ao sofrimento dos que morreram e dos que sobreviveram com profundas e irreversíveis marcas no corpo e na alma, com reflexões fundamentais sobre a crueldade que caracteriza o ser humano. Um livro que deve ser lido por todos.
Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? Não passará a dignidade a que nos agarramos de uma ilusão para disfarçarmos, perante nós mesmos, esta simples verdade: que cada um de nós pode ser reduzido a um inseto, um animal voraz, um pedaço de carne? Que ser aviltado, magoado, esquartejado... é o destino essencial da humanidade, um destino cuja inevitabilidade a História confirmou?
A Vegetariana, de Han Kang, foi anunciado como vencedor do Man Booker Prize em Maio de 2016 e, em Setembro do mesmo ano, quando foi publicado em Portugal pela Dom Quixote decidi lê-lo. Como poderia ter Han Kang vencido Elena Ferrante?, era a questão que se impunha.
Lembro-me que, na época, gostei do livro, mas não senti a empatia que esperava ter por um livro vencedor do Man Booker Prize. Provavelmente, senti que adorar este livro seria trair Ferrante, a minha obsessão literária do momento, pelo que a leitura não fluiu da melhor das formas, ainda assim, percebi que o livro tinha realmente potencial. Com o nascimento do Mais Mulheres Por Favor, decidi que este seria um dos livros que iria reler e publicar uma opinião. Esta releitura resultou, sem dúvida, muito melhor! Compreendi verdadeiramente a qualidade de Han Kang e fiquei a ansiar que fosse publicado o segundo livro da escritora em Portugal: Atos Humanos, também pela Dom Quixote, e, também, já na pilha de livros por ler cá de casa.
A Vegetariana divide-se em três partes, narradas por três pessoas que assistem à transformação da personagem principal deste livro, Yeong-hye, de diferentes perspectivas: o marido, o cunhado e a irmã. No início deste livro, Yeong-hye, após ter tido um sonho, decide deixar de consumir alimentos de origem animal, carne, peixe, ovos, leite, etc., desfazendo-se também da roupa que era feita de couro, perante o olhar estupefacto do marido, com o qual mantém uma relação desprovida de amor. É necessário ter em conta que, na cultura sul-coreana, um acto destes não é visto com bons olhos, exemplo disso é uma frase que lhe é dirigida, num jantar de negócios com o patrão do marido, quando esta anuncia que não come carne: Bem, devo confessar que me dou por muito feliz por nunca ter sido obrigado a comer com um verdadeiro vegetariano. Detestaria ter de partilhar uma refeição com alguém que considera repugnante comer carne, só por ser essa a sua opinião pessoal, não concordam?
Apesar de nos ser natural alguém tornar-se vegetariano, compreendemos, com o desenrolar da primeira parte deste livro, que se passa algo mais profundo com Yeong-hye. Para além do marido referir que esta perdeu muito peso, assistimos a momentos em que esta está completamente letárgica, enquanto, noutros, age de forma violenta, apesar da sua fraqueza física. Em alguns momentos da primeira parte do livro, é-nos mostrado o que Yeong-hye está a pensar.
A única coisa que me dói é o peito. Há qualquer coisa presa no meu plexo solar. Não sei o que será. Tem lá estado sempre nos últimos tempos. Apesar de ter deixado de usar sutiã, estou sempre a sentir este alto. Por mais fundo que tente respirar, não desaparece.
É uma rede de gritos e gemidos entrelaçados, sobrepostos em camadas, que forma aquele alto. Por causa da carne. Comi demasiada carne. As vidas dos animais que comi alojaram-se todas ali. Sangue e carne, esses corpos despedaçados estão espalhados por todos os recantos do meu corpo e, apesar dos resíduos físicos terem sido expelidos, as suas vidas teimam em permanecer dentro de mim.
Apetece-me gritar uma vez, só mais uma vez. Apetece-me atirar-me por aquela janela escura como breu. Talvez assim conseguisse acabar de vez com este nó dentro do meu corpo. Sim, talvez resultasse.
Ninguém pode ajudar-me. Ninguém pode salvar-me. Ninguém pode fazer-me respirar.
A segunda parte do livro é muito interessante em termos literários. Han Kang descreve um conjunto de cenas completamente diferentes de tudo o que já li, para o bem e para o mal, e sobre a qual não quero desvendar nada. Devem partir à descoberta, com os sentidos apurados, apesar dos sentimentos negativos que esta vos vai despertar.
A parte final é o culmirar de tudo o que tem acontecido com Yeong-hye ao longo do livro, mas não só. São-nos revelados pormenores sobre acontecimentos do passado que fazem com que consigamos encaixar algumas peças no complexo puzzle que esta personagem principal representa, sem nunca conseguirmos compreender o que se passa verdadeiramente na sua alma.
Han Kang conseguiu retratar de forma soberba a revolução extremamente complexa que se passa no interior de Yeong-hye, bem como a sua transformação interior e exterior (a metáfora apresentada na parte final é perfeita - apesar de estar na sinopse do livro, prefiro não revelar), deixando-nos compreender umas coisas, enquanto outras irão permanecer um mistério. Uma escritora contemporânea para seguir atentamente.
É o teu corpo, podes tratá-lo como quiseres. É a única coisa em que és livre de fazeres o que quiseres. E nem sequer nisso te dão liberdade.
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