[LIVROS] | A Vegetariana
A Vegetariana, de Han Kang, foi anunciado como vencedor do Man Booker Prize em Maio de 2016 e, em Setembro do mesmo ano, quando foi publicado em Portugal pela Dom Quixote decidi lê-lo. Como poderia ter Han Kang vencido Elena Ferrante?, era a questão que se impunha.
Lembro-me que, na época, gostei do livro, mas não senti a empatia que esperava ter por um livro vencedor do Man Booker Prize. Provavelmente, senti que adorar este livro seria trair Ferrante, a minha obsessão literária do momento, pelo que a leitura não fluiu da melhor das formas, ainda assim, percebi que o livro tinha realmente potencial. Com o nascimento do Mais Mulheres Por Favor, decidi que este seria um dos livros que iria reler e publicar uma opinião. Esta releitura resultou, sem dúvida, muito melhor! Compreendi verdadeiramente a qualidade de Han Kang e fiquei a ansiar que fosse publicado o segundo livro da escritora em Portugal: Atos Humanos, também pela Dom Quixote, e, também, já na pilha de livros por ler cá de casa.
A Vegetariana divide-se em três partes, narradas por três pessoas que assistem à transformação da personagem principal deste livro, Yeong-hye, de diferentes perspectivas: o marido, o cunhado e a irmã. No início deste livro, Yeong-hye, após ter tido um sonho, decide deixar de consumir alimentos de origem animal, carne, peixe, ovos, leite, etc., desfazendo-se também da roupa que era feita de couro, perante o olhar estupefacto do marido, com o qual mantém uma relação desprovida de amor. É necessário ter em conta que, na cultura sul-coreana, um acto destes não é visto com bons olhos, exemplo disso é uma frase que lhe é dirigida, num jantar de negócios com o patrão do marido, quando esta anuncia que não come carne: Bem, devo confessar que me dou por muito feliz por nunca ter sido obrigado a comer com um verdadeiro vegetariano. Detestaria ter de partilhar uma refeição com alguém que considera repugnante comer carne, só por ser essa a sua opinião pessoal, não concordam?
Apesar de nos ser natural alguém tornar-se vegetariano, compreendemos, com o desenrolar da primeira parte deste livro, que se passa algo mais profundo com Yeong-hye. Para além do marido referir que esta perdeu muito peso, assistimos a momentos em que esta está completamente letárgica, enquanto, noutros, age de forma violenta, apesar da sua fraqueza física. Em alguns momentos da primeira parte do livro, é-nos mostrado o que Yeong-hye está a pensar.
A única coisa que me dói é o peito. Há qualquer coisa presa no meu plexo solar. Não sei o que será. Tem lá estado sempre nos últimos tempos. Apesar de ter deixado de usar sutiã, estou sempre a sentir este alto. Por mais fundo que tente respirar, não desaparece.
É uma rede de gritos e gemidos entrelaçados, sobrepostos em camadas, que forma aquele alto. Por causa da carne. Comi demasiada carne. As vidas dos animais que comi alojaram-se todas ali. Sangue e carne, esses corpos despedaçados estão espalhados por todos os recantos do meu corpo e, apesar dos resíduos físicos terem sido expelidos, as suas vidas teimam em permanecer dentro de mim.
Apetece-me gritar uma vez, só mais uma vez. Apetece-me atirar-me por aquela janela escura como breu. Talvez assim conseguisse acabar de vez com este nó dentro do meu corpo. Sim, talvez resultasse.
Ninguém pode ajudar-me. Ninguém pode salvar-me. Ninguém pode fazer-me respirar.
A segunda parte do livro é muito interessante em termos literários. Han Kang descreve um conjunto de cenas completamente diferentes de tudo o que já li, para o bem e para o mal, e sobre a qual não quero desvendar nada. Devem partir à descoberta, com os sentidos apurados, apesar dos sentimentos negativos que esta vos vai despertar.
A parte final é o culmirar de tudo o que tem acontecido com Yeong-hye ao longo do livro, mas não só. São-nos revelados pormenores sobre acontecimentos do passado que fazem com que consigamos encaixar algumas peças no complexo puzzle que esta personagem principal representa, sem nunca conseguirmos compreender o que se passa verdadeiramente na sua alma.
Han Kang conseguiu retratar de forma soberba a revolução extremamente complexa que se passa no interior de Yeong-hye, bem como a sua transformação interior e exterior (a metáfora apresentada na parte final é perfeita - apesar de estar na sinopse do livro, prefiro não revelar), deixando-nos compreender umas coisas, enquanto outras irão permanecer um mistério. Uma escritora contemporânea para seguir atentamente.
É o teu corpo, podes tratá-lo como quiseres. É a única coisa em que és livre de fazeres o que quiseres. E nem sequer nisso te dão liberdade.