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31
Dez17

[LIVROS] | A Paixão segundo G. H.

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A POSSÍVEIS LEITORES

 

Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer se seja, se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G. H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.

 

C.L.

Antes do início do livro, Clarice faz-nos este pedido, deixando claro que este livro não é para qualquer leitor. Esta é sem dúvida a melhor recomendação que se pode fazer. Creio que é necessária uma certa maturidade para o apreciar. Quando o li pela primeira vez este mês, passou-me completamente ao lado, gostei de algumas partes, mas no geral senti que não tinha percebido quase nada. Após tê-lo terminado, pensei imediatamente que esta seria uma releitura a fazer daqui a dez anos, no mínimo.

 

Ainda assim, estava profundamente desiludida comigo por não ter compreendido Clarice Lispector, eu que achava que ia amá-la. Decidi então pesquisar sobre ele. Li opiniões e vi vídeos sobre este livro que me fizeram ver como é realmente grandioso, que devia dar-lhe uma nova oportunidade, não daqui a dez anos, mas já. Parti então para a sua releitura, a minha última leitura deste ano. Conhecendo já a história, consegui focar-me na mensagem que Clarice pretendia transmitir e tudo começou a fazer sentido.

 

G. H. decide arrumar o quarto da empregada que se havia ido embora, pois julga que esta o havia deixado desarrumado, imundo, na escuridão, o oposto do resto da sua casa.  Na tentativa de o deixar limpo para a nova empregada, G. H. surpreende-se quando vê que a antiga empregada o deixara minimanente arrumado e que estava até bastante iluminado. Sem saber por onde começar a arrumar, G. H. decide-se pelo armário. Quando o abre, vê que há uma barata lá dentro e fica em pânico, horrorizada. É então a partir deste encontro com a barata que se vai desenvolver todo o livro, uma permanente epifania.

 

Por mais estranho que vos possa parecer, é através da interacção que G. H. tem com a barata que esta personagem compreende a grandiosidade que a envolve, o sentido da vida, de Deus, de tudo. É difícil colocar por escrito tudo o que G. H. nos revela enquanto nos dá a mão, algo que nos pede frequentemente ao longo deste relato, pois esta descobre-se a si mesma, compreendendo que havia sido tão pouco, que tinha estado e vivido enganada toda a vida. Emocionada e horrorizada, G. H. partilha connosco tudo o que compreendeu.

O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal. Enquanto os seres inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles não escolhem. Mas de mim depende eu viver livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei sendo especificamente humana.

O misto de felicidade e horror com que G. H. relata a sua epifania tornam este livro inconstante, frenético e depressivo, o que pode fazer com que, por vezes, seja difícil de o acompanhar. Assim, é realmente necessário estar completamente dedicado a este relato para não nos perdemos nas inúmeras conclusões que G. H. partilha connosco.

Pela primeira vez eu sentia com sofreguidão infernal a vontade de ter tido os filhos que eu nunca tivera: eu queria que se tivesse reproduzido, não em três ou quatro filhos, mas em vinte mil a minha orgânica infernalidade cheia de prazer. Minha sobrevivência futura em filhos é que seria a minha verdadeira atualidade, que é, não apenas eu, mas minha prazerosa espécie a nunca se interromper. Não ter tido filhos me deixava espasmódica como diante de um vício negado.

Aquela barata tivera filhos e eu não: a barata podia morrer esmagada, mas eu estava condenada a nunca morrer, pois se eu morresse, uma só vez que fosse, eu morreria. E eu queria não morrer mas ficar perpetuamente morrendo como gozo de dor supremo.

Apesar de ser um livro bastante curto, é enorme em conteúdo. Não o recomendo a todos os leitores, mas posso garantir-vos que, se o compreenderem realmente, vão adorá-lo e reconhecer a sua grandiosidade. Quanto a mim, não podia estar mais feliz com esta oportunidade que lhe voltei a dar, vou sem dúvida ler mais de Clarice Lispector no próximo ano.

Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exactamente isto.

 

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