[LIVROS] | Frida Kahlo. Uma Biografia
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Nunca mais diria de ninguém no mundo, agora, que esse alguém era isto ou aquilo. Sentia-se muito jovem e, ao mesmo tempo, indizivelmente velha. Passava como uma faca através de todas as coisas e, ao mesmo tempo, ficava de fora, a observar. Tinha a permanente sensação, quando olhava para os táxis, de estar de fora, de estar longe, sozinha, no mar; sempre havia tido a sensação de que era muito perigoso viver um só dia que fosse. Não que se julgasse inteligente, ou muito diferente dos demais. (...) Não sabia nada; nem línguas, nem história; raramente lia agora um livro, a não ser memórias, antes de adormecer. E, no entanto, era tão absorvente, para ela, tudo isto; os táxis que passavam. Mas jamais diria a respeito de Peter, jamais diria de si própria, eu sou isto ou sou aquilo.
O Projecto Ler Poesia tem estado em ponto morto nesta segunda metade do ano, mas não está esquecido. Em Setembro, houve tempo para ler um pequeno livro da colecção "Inéditos", do Expresso, da autoria de Matilde Campilho. Há um par de anos quando li Jóquei, gostei, mas não amei, pelo que estava com vontade de tirar a teima com este Ringue. Não sei se foi do clima do verão, das férias, da praia e da piscina, mas adorei os poemas deste livro. Dei por mim a lê-los uma e outra vez, tal foi o meu amor, para os interiorizar. Deixo abaixo o meu preferido.
Strand
Algumas vezes
mesmo quando faz sol
e pouco vento e
os reflexos das coisas
desenham objetos
multiformes sobre as
calçadas extraordinárias
da minha cidade
Mesmo assim às vezes
em certos sábados
eu dou por mim trepando
muito devagar o escadote
da memória ou da imagem
Levanto um dedo indicador
e de repente meu corpo
está junto à estante stereo
Vinte e sete centímetros
acima do chão americano
e à minha frente o abismo
Aquele transformador abismo
onde crescem e se reproduzem
as cabeças multiformes
Meu corpo está de novo
na frente do corpo essencial
O corpo que nos ajudará
a ultrapassar o começo
deste século esfarrapado
Quero dizer, às vezes
Mesmo quando é sábado
e o meu país é o mais manso
e mais solar deste continente
que mergulha devagar
na escuridão do retrocesso
Eu regresso à livraria americana
esqueço a política americana
ou a feroz decisão americana
E me coloco de pé na frente
de O'Hara, Berger, Stein,
Bolaño, Carson, Amichai,
Didion, Arendt ou até O. Paz
Há muita luz a vir da estante
Pátria nenhuma a sobressair
Há aquela ideia enciclopédica
de Diderot que diz que devemos
reunir todo o conhecimento
acumulado à superfície desta terra
Para assim demonstrar o sistema geral
às pessoas com quem vivemos
E também transmiti-lo
àqueles que aqui ficarão
muito depois de nós
Para que o trabalho de séculos
e séculos não se torne inútil
nos séculos seguintes
Para que os nossos descendentes
sejam mais intruídos, mais
virtuosos e mais alegres
Sim, talvez este texto
seja demasiado longo
Ou este século demasiado duro
Talvez faça demasiado sol
sobre o meu corpo que insiste
no exercício da memória
Mas em certo sábados
desta época de transição
eu acho mesmo que
a força atlética mais eficaz
É aquela que nos leva
a percorrer com atenção
uma boa parte da literatura
Que nos antecede, que nos
é contemporânea, e cujo corpo
se deitará sobre o nosso corpo
quando todos os nossos corpos
forem finalmente a cinza branca
de uma antiga e ultrapassada era.
(para quem chegou até aqui, é lindo, não é?) Mais uma vez, à semelhança do que me aconteceu com outros livros que li nas minhas férias, fiquei com vontade de escrever, algo que ainda não me passou. Já tentei escrever um poema ou outro, mas acabei sempre por apagar tudo. O que mais gostei de escrever, apaguei sem querer no telemóvel (é lamentável não haver por lá um CTRL+Z, ou há e eu fui simplesmente burra?) e quase tive vontade de chorar. Se calhar foi um sinal do destino e aquilo não valia nada. Isto tudo para chegar a uma conclusão poética sobre a poesia: a beleza da poesia é isto mesmo, uns poemas não nos dizem nada, outros dizem tudo e são como um pequeno terramoto nas nossas vidas, fazem despertar em nós coisas que não julgávamos serem possíveis, pelo que é importante não desistir de certos poetas porque a primeira leitura não correu bem. Já vos aconteceu isto com algum poeta/poetisa? Já ficaram com vontade de escrever poesia depois de ler um livro de poemas? Vá lá, não me façam parecer um extraterrestre e partilhem as vossas histórias nos comentários.
Estou Viva, Estou Viva, Estou Viva, foi, de certo, a melhor leitura por recomendação que fiz este ano. Atirei-me de olhos fechados, certa de esta vir a ser uma das melhores leituras de 2018 e, quiçá, da vida. Não me enganei. Tudo graças à Cláudia (obrigada, obrigada, obrigada).
O título do livro de Maggie O'Farrell, retirado de uma famosa passagem d'A Campânula de Vidro, de Sylvia Plath, é um magnífico prenúncio de que temos um excelente livro pela frente. Num conjunto de 17 textos, cada um associado a uma parte do corpo humano (pescoço, pulmoões, intestinos, cerebelo, etc.), somos confrontados com os diversos momentos em que a vida da autora esteve em risco, precisamente através dessas partes do corpo. A escrita de O'Farrell é cativante e este livro devora-se em menos de nada, tal é a ânsia de saber o que aconteceu, de sofrermos em conjunto (tantas são as vezes em que nos revemos, ou percebemos que algo muito semelhante nos poderia ou poderá acontecer), de respirarmos de alívio quando chegamos ao fim do capítulo.
Doenças, sobressaltos com estranhos e conhecidos, pequenos acidentes domésticos ou rodoviários, aborto, maternidade, são algumas das situações de risco de vida abordadas neste livro de forma absolutamente deslumbrante. Estou Viva, Estou Viva, Estou Viva não poderia ter sido escrito de forma diferente, é perfeito na sua catástrofe e na sua sobrevivência, nas suas sequelas, danos e traumas. Na sua aprendizagem.
As partes que mais me marcaram foram aquelas que são inerentes a ser mulher, que na primeira, ou terceira pessoa (as histórias mais próximas de nós), iremos de certeza algum dia tomar contacto e que, por isso, acredito que tenham mais impacto. Outro dos meus capítulos preferidos foi aquele em que Maggie descreve como foi estar internada devido a uma lesão no cerebelo e, depois, ter ficado em casa durante um longo período de tempo, com severas limitações, regressando, por fim, à escola. Um livro incrível, que, apesar do medo que nos possa, eventualmente, transmitir, é um fantástico testemunho de transformação e celebração da vida, sem ceder à vitimização.
Estar tão perto da morte, em pequena, para depois voltar a emergir acima da superfície da vida, conferiu-me durante muito tempo um tipo especial de imprudência, uma atitude sobranceira ou até louca para com o risco. Podia, percebo, ter ido no sentido contrário e ter-me transformado numa pessoa limitada pelo medo, restringida pela cautela. Em vez disso, eu saltei do paredão do porto. Caminhei sozinha em montanhas remotas. Apanhei comboios noturnos através da Europa, sozinha, chegando a capitais a meio da noite sem ter onde ficar. Andei de bicicleta, despreocupadamente, por aquela que é considerada a estrada mais perigosa da América Latina, um carreiro vertiginoso, a desfazer-se, num pico íngreme, em cujas bermas abundam inúmeros memoriais àqueles que perderam a vida em quedas no local. Caminhei em lagos congelados. Nadei em águas perigosas, figurativa e literalmente.
Não era que eu desse valor à minha existência; era mais uma questão de ter um desejo insaciável de me forçar a abraçar tudo o que ela pudesse oferecer. Quase perder a vida aos oito anos de idade deu-me uma tranquilidade - talvez excessiva - em relação à morte. Sabia que podia acontecer, a um certo momento, e a ideia não me assustava; a sua proximidade parecia-me, pelo contrário, quase familiar. Saber que eu tinha sorte em estar viva, que podia tão facilmente ter corrido de outra forma, enviesou a minha forma de pensar. Encarei o resto da minha vida como um extra, um bónus, um prémio: podia fazer dela o que quisesse. E não só tinha enganado a morte, como tinha também escapado a um destino de invalidez. O que mais poderia fazer com a minha independência, com o meu estado ambulatório, a não ser explorá-los ao máximo?
No espírito da minha mais recente obsessão: Frida Kahlo, levei para as minhas férias de Verão um livro que já tinha comprado a propósito do Mulheres Viajantes, de Sónia Serrano, Viva México, de Alexandra Lucas Coelho, sabendo de antemão que uma parte significativa deste era dedicada à famosa pintora mexicana.
Ninguém poderá alguma vez dizer que viu a Cidade do México. Quando a começamos a ver, calamo-nos, e depois nunca mais acabamos de a ver. O tubarão paira como um avião de papel.
No tempo em que menos de uma pessoa por dia era morta em Juárez, os repórteres tinham umas horas para tentar constituir a história. Isso foi há séculos, em 2007. Agora, um repórter começa a escrever sobre o último morto, e no fim do parágrafo já está desactualizado. Os mortos fazem fila para entrar nas notícias, tal como na morgue.
As pessoas normais perdem tempo a pensar no que deviam ter feito, e algumas pessoas vêem o que há a fazer como uma pedra. Ser diferente podia ter acabado com Frida, mas ela estava destinada a viver contra todas as previsões. De uma forma um pouco cosmogónica - mas estar aqui ajuda-nos a não ter medo disso -, estava destinada a alterar para sempre o México. Porque Frida Kahlo existiu, o México é mais forte, mais complexo, mais desarmante. Na dor como no riso, ela continua os deuses e portanto é o futuro.
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