[LIVROS] | Olha-Me como Quem Chove
Em virtude de 99% dos meus livros estarem encaixotados e de me ter esquecido de deixar de parte um livro de poesia para este mês, vi-me na necessidade de adquirir um novo ou ir à biblioteca. Devido ao pequeno caos, nada poético, em que anda a minha vida, lá acabou por vencer a primeira opção: comprei este livro numa visita de cinco minutos à secção de poesia de uma Fnac. Autora, título e capa convenceram-me, não li um único poema, foi pegar e levar, fazendo figas para que fosse bom.
Confesso desde já a minha ignorância, mas desconhecia por completo que Alice Vieira escrevia poesia. Este livro foi editado em Março deste ano e existem mais três volumes de poesia de Alice Vieira: Dois Corpos Tombando na Água (2007), O Que Dói às Aves (2009) e Os Armários da Noite (2014).
Olha-Me como Quem Chove foi uma óptima surpresa e uma aposta ganha. Para além do prefácio, é constituído por três partes, Olha-Me como Quem Chove, Dias com Gente Assim e Das Palavras. As duas primeiras partes são muito centradas no envelhecimento, na ausência, na morte e na solidão: na fugacidade da vida. Retratos de como tudo vai mudando e de como nos vamos enganando e abstraindo do caminho, com uma meta muito certa, que todos percorremos. Apesar da melancolia e tristeza implícitas, nota-se, por vezes, em certos pormenores uma paz interior tranquilizante. Todas estas temáticas são muito especiais para mim, alma que se preocupa sobremaneira com o envelhecimento, com a rapidez com que tudo se passa e que se põe a imaginar várias vezes o vazio perpétuo em que consistirá a perda do amor da vida, pelo que em certos poemas fiquei com os olhos cravejados de lágrimas e tive de fazer pausas.
o que levam de nós as coisas velhas que
deitamos fora porque as casas são
pequenas e os objectos agora
envelhecem mais depressa que nós
nas casas velhas
nós éramos outros mas
os lençóis de linho sobreviviam
a todos os mortos e passavam
de corpo para corpo e
eram sempre os mesmos
e envelheciam em arcas de cânfora
que os avós tinham trazido de macau
e nunca tínhamos tido tempo de
esvaziar completamente
mas agora tudo é feito
para morrer depressa e
sem deixar mágoas nem vestígios
que fazem dentro das nossas vidas
gravadores de fita máquinas de escrever faxes
cassetes onde aprisionámos momentos e rostos
que julgávamos eternos
dvd's que pensávamos rever
até ao fim dos nossos dias
(o senhor da sucata estava feliz
agradeceu muitas vezes
enquanto amontoava tudo deixando
a minha casa subitamente maior
- ou muito mais pequena
conforme o ponto de vista)
Fiquei com pena de ser um livro tão curto, gostava de ler mais, contudo, a última parte, com apenas dois poemas, encerra este livro de forma soberba, uma antítese à perda e à solidão: o desejo e o amor eterno. Fica o primeiro desses dois, que consta também na contracapa, um dos meus preferidos do livro a par com o que transcrevi acima, ficando outros por relevar.
Estendo na cama o corpo que há-de ser
o porto a que esta noite vais chegar.
E entre névoas e ventos hei-de ver
o barco dos teus dedos ancorar
na margem mais secreta do desejo.
E há-de haver um mapa ali por perto
que te leve à enseada do meu beijo
e à fogueira de tudo o que está certo.
E na respiração da tua boca
bebo o grito da terra sempre pouca
para a noite em que ficarmos sós.
Mas o corpo descansa apaziguado:
sei que o sol já repousa do meu lado
e que o teu rio já chegou à foz.