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Mais Mulheres Por Favor

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28
Set17

[LIVROS] | Outono

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Os finalistas do Man Booker Prize foram anunciados no dia 13 de Setembro, fazendo parte da lista reduzida três mulheres: Emily Fridlund, com History of Wolves, Fiona Molzey, com Elmet, e Ali Smith com Outono, publicado em Portugal, pela Elsinore, em Maio deste ano. Como tinha lido há pouco tempo o livro de contos A Primeira Pessoa e outras histórias, de Ali Smith, e gostado bastante (falarei dele em breve), decidi comprar Outono e levá-lo para o Algarve para o saborear entre mergulhos na praia e na piscina, numa semana de transição entre Verão e Outono, convencendo-me que estavam reunidas as condições perfeitas para a sua leitura.

 

Soube, após poucas páginas lidas, que Outono ia conquistar o meu coração, facto que veio a confirmar-se com maior evidência quando dei por mim a poupar as páginas finais, apesar de saber que este livro faz parte de uma tetralogia (relativa às estações do ano, naturalmente). Sem ter lido mais nenhum dos romances, foi crescendo uma sensação dentro de mim de que este livro seria o vencedor do prémio, devido à forma como está escrito (consolidei o meu gosto pela escrita de Ali Smith com este livro), à delicadeza da história e, sobretudo, ao contexto político em que se insere, já que foi escrito no pós-Brexit e são feitas diversas referências a um futuro que se avizinha incerto e instável após este acontecimento e que nos toca cada vez mais directa do que indirectamente.

 

Ali Smith, numa estrutura que muito aprecio, com viagens entre passado e presente, escreve sobre a amizade entre duas pessoas com 70 anos de diferença: Daniel Glück e Elisabeth Demand. Quando Elisabeth, ainda criança, muda de casa com a mãe conhece o misterioso vizinho do lado, Daniel, nascendo uma relação de amizade que irá durar para além dos tempos, e que vamos acompanhando ao longo deste livro. Daniel é um homem culto, que gosta de ler e aprecia arte, que escreveu letras de músicas, e que introduz Elisabeth a este mundo apesar da relutância da mãe desta, já que não vê com bons olhos que Elisabeth passe tanto tempo com um homem tão velho.

Devemos estar sempre a ler alguma coisa, disse ele. Mesmo que não estejamos a ler fisicamente. Caso contrário, como seremos nós capazes de ler o mundo? Imagina o processo como uma constante.

Não quero revelar mais do que estes traços do livro, porque acho que deve ser descoberto à medida que é lido, tal como o fiz, sem saber nada sobre ele. Vão surpreender-se e ficar ligados a esta história que tem tanto de bela quanto de melancólica (afinal, não é assim mesmo o Outono?), fazendo-nos reflectir sobre diversos aspectos sociais e políticos, enquanto admiramos a construção e evolução de uma relação de amizade invulgar, mas tão bonita.

Nesse mesmo dia, à noite, quando estava em casa a adormecer no sofá em frente à televisão, Elisabeth rememoraria o momento em que viu os olhos dele abrirem, e no quanto se assemelhava àquele instante em que por acidente se vê as lâmpadas dos postes de iluminação pública acender e se tem a sensação de se estar a ser brindado com um presente, ou uma oportunidade, ou de se ser tido como distinguido e escolhido pelo momento.

 

O vencedor do Man Booker Prize será anunciado no dia 17 de Outubro e estarei a torcer por Ali Smith. Ainda assim, gostava muito que as obras das outras duas escritoras na lista de finalistas fossem editadas em Portugal, em particular Fiona Molzey, já que tem 29 anos e Elmet é o seu romance de estreia.

 

27
Set17

[LIVROS] | Trinta e Oito e Meio

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Tenho um amor especial por livros de crónicas, no entanto, nunca havia lido um livro deste género escrito por uma mulher. Maria Ribeiro, nascida no Rio de Janeiro, é licenciada em Jornalismo, actriz de cinema e televisão, realizadora de documentários e cronista do jornal O Globo e da revista TPM. Participou recentemente no filme Como Nossos Pais, da realizadora Laís Bodanzky, filme que gostava muito que chegasse às salas de cinema de Portugal brevemente (fica o apelo). Agora que as apresentações estão feitas, acrescento uma coisa: vão desejar que esta mulher se torne vossa amiga depois de lerem Trinta e Oito e Meio.

 

Maria Ribeiro tem um talento especial para as crónicas, tem graça, é irónica, fala abertamente do que sente e das suas angústias, do que gosta e do que gostaria de ser. É impossível não nos identificarmos com o que escreve, algo que valorizo muito nas crónicas e que me faz adorar este género literário.

É que, assim como qualquer pessoa com o mínimo de angústia, não sou quem gostaria de ser. Meu "eu ideial" conheceria Machu Picchu e as savanas africanas, teria lido toda a obra do Tolstói (em vez da colecção do Tintim) e pediria, com água na boca, salada com grelhado em todos os restaurantes. 

A supra-eu acordaria cedo. Faria suco verde com folhas orgânicas enquanto leria os colunistas políticos e as resenhas de lançamentos literários. Nada de pão com manteiga vendo notícias da TV. Aliás, nada de TV. Às 11 da manhã eu já teria feito ioga e estaria pronta pra ir com meu filho pequeno à pracinha. Eu acharia uma delícia ir à pracinha e brincaria não só com meu filho, mas com vários bebês (e se um bebê empurasse meu filho eu jamais teria raiva, imagine!). Uma hora depois eu estaria no carro com meu outro rebento pra levá-lo à escola, e no caminho iríamos ouvindo as principais sinfonias de Beethoven, um absurdo essa gente que se rende a Michel Teló.

Ao longo da leitura de Trinta e Oito e Meio, Maria Ribeiro torna-se nossa amiga, faz-nos desejar que fosse nossa irmã (eu, que não tenho irmãos, fiquei com essa vontade), faz-nos rir e emocionar, dá-nos vontade de a abraçar, de a ter sempre perto de nós, tal a energia contagiante que transparece nos seus textos

Mas este misto de corpo e mente que vos fala é feito de água e Leonídio, órgãos e Leonídio, músculos e Leonídio. E enquanto eu estiver aqui meu pai vai estar mais do que vivo.

Meu progenitor me deixou uma herança de fúria e afecto, e assim espero atravessar muitas águas de março, agradecendo ao mês que trouxe meu filho e levou meu pai, e cuja brisa me amansa o coração. 

Há crónicas sobre Clarice Lispector, maternidade e a situação familiar complexa, mas tão comum actualmente, em que vive e sobre a qual fala de uma forma tão natural e leve que nos deixa de sorriso no rosto.

Clarice Lispector dizia que, se o mundo fosse justo, as mulheres teriam direito a três vidas: uma pra se dedicarem ao amor, outra à profissão e uma última à maternidade. Eu incluiria ainda uma existência inteira pra ir ao cinema e outra pra conhecer o mundo, mas preciso admitir que a derradeira opção da escritora tem a vantagem de ser a única a contemplar de uma só vez dois momentos sublimes do cromossomo X: o nascimento de um filho e também o de uma mãe. Procriar é ter a infância de volta e poder dormir tarde ao mesmo tempo; o melhor dos mundos ao alcance das mãos.

E pro meu filho, que volta e meia se confunde e às vezes fica triste com essa família meio torta, com duas irmãs que não são filhas da mamãe, um irmão que vai chegar e não é filho do papai, eu digo:

Eu não digo nada. Digo que o amo muito, e o deixo chorar um pouco. E, como num mundo ideal, onde os amores se acumulam e não são substituídos, ele pergunta: "Mãe, e o bebê, com quem vai parecer?" E eu, grávida de oito meses de mais um menino, respondo: "Ah, João, com você, comigo, com o Caio..." E ele, depois de um tempo: "E com o meu pai, né, mãe?"

Sorrio. "E com o seu pai, filho. Com o seu pai."

 

Estou completamente apaixonada por escritoras brasileiras, com o sotaque e a graça que transborda a cada parágrafo, a cada página, a cada crónica, e tal deve-se, em grande parte, a Maria Ribeiro. Leiam-na também.

 

25
Set17

[LIVROS] | Poesis

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Toda esta aventura do Mais Mulheres Por Favor resultou, em grande parte, de ter dedicado alguns meses deste ano à leitura de poesia escrita por mulheres. Como tal, não poderia adiar mais tempo a minha opinião sobre o último livro de poesia que li: Poesis, de Maria Teresa Horta.

 

Poesis resulta de uma ideia brilhante: descrever o processo criativo em que consiste a escrita da poesia. Está organizado em sete partes, Vocação, Invocação, Avocação, Convocação, Provocação, Evocação e Ad Finem, no final dos sete processos, um poema intitulado de Epopeia, um dos meus preferidos, e que resume o conteúdo deste livro.

Esta é a minha epopeia

feita de poesia

perdimentos e palavras

 

sem deuses sem batalhas

sem heróis nem lágrimas

sem o bronze das armas

 

Poema a poema a poema

paixão após fulgor após beleza

na sua dimensão mais ávida

 

Poesis tornou-se num dos meus livros preferidos de poesia pela ideia original e pelos poemas magníficos que Maria Teresa Horta escreveu e que fizeram deste livro algo absolutamente épico. Pessoal e intimista, Poesis contém nele tudo o que sentimos quando lemos poesia e imaginamos o que está por detrás da sua escrita, quando pensamos em escrevê-la e quando nos aventuramos a fazê-lo, pelo menos é assim que imagino o seu processo criativo.

 

É difícil escolher, entre tantas marcações, alguns dos meus preferidos para vos aguçar ainda mais a curiosidade, mas deixo-vos alguns abaixo juntamente com uma recomendação: leiam este livro que é, sem dúvida, um verdadeiro hino à poesia, tenho a certeza que vai fazer brotar nos vossos corações um amor especial por esta arte ou enraizar ainda mais o vosso amor, caso já lá habite.

Traços furtivos

 

Sinto-lhe os traços

furtivos

no côncavo da minha mão

 

ganhando estranhezas súbitas

agudezas, desvarios

dos meus sentidos perdidos

a prender-me o coração

 

a descer até ao fundo

pela rasura do braço

até chegar ao desvão

na delgadeza do pulso

 

É a poesia que chega

tomando forma e ruído

a falar o que eu não digo

 

Reler-me

 

Releio-me

no próprio espanto

silenciado

 

Reencontro-me

 

na poesia primeiro

em seguida no verso

e por fim no poema

 

inteiro

 

As rédeas do vento

 

Nunca pressinto o banal

arrumando

a minha vida

 

eu tomo as rédeas

do vento

galopo a fímbria dos dias

 

desato o nó

dos cabelos

vou voando na poesia

 

22
Set17

[DISCOS] | My Woman

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My Woman (2016) é o terceiro (e mais recente) álbum de Angel Olsen, cantora e compositora norte-americana, nascida em 1987. Angel Olsen é responsável por ter escrito e dado voz a algumas das minhas músicas preferidas, algumas delas presentes neste álbum, muito bem recebido pela crítica.

 

Como admiradora sua desde 2014 tinha, obrigatoriamente, de começar a coleccionar os vinis. Este foi o primeiro que adquiri, um gatefold maravilhoso com as letras das músicas e algumas fotos no seu interior, e uma foto de capa soberba.

 

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A minha música preferida deste álbum é Shut Up Kiss Me. Ouçam-na com o volume bem alto. Outras de que também gosto muito são: Never Be Mine, Give It Up, Not Gonna Kill You e Woman.

 

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20
Set17

[LIVROS] | As Coisas Que os Homens Me Explicam

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A capa e o título deste livro conquistaram-me desde o primeiro dia. Por esta razão, este foi um daqueles livros em que o tempo entre comprá-lo e lê-lo foi praticamente nulo. O carácter urgente desta leitura foi totalmente justificado, já que As Coisas Que os Homens Me Explicam entrou directamente para a lista dos livros preferidos de sempre

 

Neste livro de Rebecca Solnit estão reunidos nove textos sobre desigualdade de género, todos maravilhosamente bem escritos, carregados de ironia, humor e tremendamente pertinentes. O primeiro deles relata um episódio caricato, onde um homem lhe explica pormenores sobre um livro que não leu e que, curiosamente, foi escrito por ela (!). Este episódio deu origem a um texto publicado no blog "TomDispatch", em 2008, texto esse que teve uma enorme projecção e que fez com que o termo mansplainning (man explaining) passasse a ser utilizado em larga escala (apesar de não ter sido criado por Solnit). O termo mansplained chegou mesmo a ser uma das palavras do ano de 2010 do New York Times.

Qualquer mulher sabe a que me refiro. É a arrogância que dificulta, por vezes, a vida a qualquer mulher em qualquer área; que impede as mulheres de se pronunciarem ou de se fazerem ouvir quando se atrevem a falar; que reduz as mulheres jovens ao silêncio, mostrando-lhes, tal como o assédio nas ruas, que o mundo não é delas. Faz-nos duvidar de nós próprias e autoimpormo-nos limites, da mesma maneira que desenvolve a autoconfiança excessiva e injustificada dos homens. (...)

A maior parte das mulheres trava guerras em duas frentes: uma em nome de qualquer que seja o tema em discussão e outra simplesmente para terem o direito de falar, de acalentar ideias, para lhes ser reconhecida a capacidade de serem detentoras de factos e verdades, de terem valor, de serem um ser humano. As coisas melhoraram, mas esta guerra não terminará no meu tempo de vida. Eu ainda a estou a travar, por mim, sem dúvida, mas também por todas as mulheres mais jovens que têm algo a dizer, com a esperança de que o consigam fazer. (...)

(Para que fique registado, penso que as mulheres também explicam coisas de maneira condescendente aos homens e não só. Mas isso não é indicativo da enorme diferença de poder, que assume formas muito mais sinistras, nem do padrão geral que caracteriza a maneira como o género funciona na nossa sociedade.)

 

Não podia deixar de vos transcrever estas partes do primeiro texto, já que me fizeram adorar, automaticamente, Rebecca Solnit, estando ainda na página 20. Outros temas abordados neste livro dizem respeito à violência de género: a pandemia de violência é sempre explicada com base em tudo, menos no género, em tudo, menos no que parece ser o maior padrão explicativo de todos, e ao feminismo como impulsionador de mudança no mundo: o feminismo tornou o casamento entre pessoas do mesmo sexo possível precisamente por fazer tanto para transformar uma relação hierárquica numa relação igualitária. São ainda referidos diversos casos mediáticos que, de uma forma mais imediata ou mais demorada, tiveram impacto no progresso da defesa dos direitos das mulheres.

 

Como se ainda não houvesse razões suficientes para ler este livro, cada texto é acompanhado de uma imagem de Ana Teresa Fernandez, nascida no México, actualmente Professora de Arte em São Francisco. Podem ver as suas maravilhosas pinturas aqui (fiquei fã dos grupos de pinturas: Foreign Bodies, Ablution, Telaraña e Pressing Matters - algumas são usadas no livro). Há também um texto dedicado a Virginia Woolf, um dos meus preferidos: ela exigia a libertação das mulheres não só para poderem fazer algumas das coisas institucionais que os homens faziam (e que as mulheres de hoje também fazem), mas também para terem a liberdade total para deambularem, geografica e imaginativamente.

 

Resta-me acrescentar que As Coisas Que os Homens Me Explicam reúne reflexões essenciais a todos nós. As suas conclusões são tão claras e esclarecedoras que nos sentimos com poder suficiente (e sem mais desculpas) para erguer os braços e lutar por um mundo sem desigualdade de género, por um mundo melhor.

Eis a tal estrada, que talvez tenha mil quilómetros de comprimento, e a mulher que a percorre não vai no primeiro quilómetro. Não sei quanto é que ela ainda tem de percorrer, mas sei que não está a andar para trás, apesar de tudo... e não caminha sozinha. A sua companhia são porventura inúmeros homens e mulheres e pessoas com géneros mais interessantes.

Eis a caixa que Pandora abriu e as lâmpadas das quais foram libertados os génios; hoje, parecem prisões e caixões. Morrem pessoas nesta guerra, mas as ideias não podem ser apagadas. 

 

Para além deste livro, encontra-se também já publicado Esta Distante Proximidade, habitante da minha estante feminina, mas cuja leitura está suspensa já que aguardo um maior número de obras de Rebecca Solnit publicadas em Portugal, para não ficar um vazio no meu coração depois de o ler. Desta forma, deixo um pedido especial à Quetzal: editem tudo o que foi e será publicado pela mão desta escritora, por favor.

 

WOOK - www.wook.pt

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